20.12.17

MEMÓRIA: Há 40 anos, outros Natais... (3)

Três histórias de guerra em tempo de paz ou vice-versa...
Estamos a poucos dias da celebração da data festiva que é o nascimento de Jesus Cristo. Tempo de reconciliação entre os homens de boa vontade, de paz e de concórdia. Recordo, aqui, nestas três histórias que podiam ser de Natal, de esperança, paz e fraternidade, três episódios da guerra colonial.  
Recordação de um Homem bom
Conheci o Carlos há muitos anos. Nascera no Pé da Serra e era ali na aldeia, por alturas do Verão e das festas que era costume encontrá-lo, a pretexto de um jogo de futebol, no “estádio” sobranceiro ao povoado. Outras vezes encontrava-o quando vinha a Nisa com a mãe e a irmã, tratar da vida.
Foi, pois, com satisfação que o encontrei, em 1971, na EMEL em Paço de Arcos. Estávamos a tirar a especialidade, eu como “soldado-raso”, ele como cabo-miliciano. Éramos de cursos diferentes e ele no fim do dia recolhia-se até à Amadora, onde, presumo, tinha acolhimento. Não falava muito, o Carlos. As nossas conversas tinham como motivo Nisa e o Pé da Serra, as coisas próprias da juventude.
Terminada a especialidade deixámos de nos ver. Cada um tomou o seu caminho. Eu andei de quartel em quartel até “poisar” nos Adidos, na Calçada da Ajuda. Foram meses infernais, de Fevereiro a Junho de 1972. Tinha sido mobilizado para a Guiné, em rendição individual, e nesses meses vim Nisa, despedir-me da família, umas quantas vezes. Parecia um “calvário” interminável, a repetição de uma despedida que de cada vez se tornava mais dolorosa.
Parti, enfim, rumo a Bissau, ao quartel do Batalhão de Engenharia. Passado pouco tempo encontrei o Carlos. A tropa, o sortilégio da vida militar, o que quer que fosse, juntara-nos na mesma unidade, em África. Era furriel-miliciano na secção de Motores Fixos, que prestava apoio técnico e reparava geradores, alternadores, de toda a Guiné, serviço que, não raras vezes, o levavam aos locais mais inóspitos do território.
Eu tinha outra ocupação e em serviço diferente, motivos por que, no mesmo quartel, não se víamos amiúde.
Após o 25 de Abril, num dia de Maio de 1974, à tardinha, vejo chegar o Carlos num jeep e diz-me: Mário, anda daí, vem comigo!
Estranhei o pedido, àquela hora e respondi-lhe:- Espera, vou buscar a G3!
- Não, não é preciso, não tragas arma!
Montei-me no jeep, íamos a caminho de Bissalanca e rumámos na direcção de Safim. Até aqui ainda estávamos em zona de segurança. Prosseguimos na estrada, perguntei-lhe aonde íamos e ele só me dizia: Espera que já vês!
Eu não estava a ver nada e a ficar cada vez mais inseguro. Passámos Nhacra e cortámos á direita. Já sabia aonde íamos, faltava saber o motivo e tornei a perguntar-lhe:
- Ó Carlos, mas o que é que vamos fazer ao Cumuré, a esta hora?
- Vamos ver uns amigos! – respondeu.
Passámos a porta de armas, ele disse qualquer coisa que não entendi ao oficial de dia e este apontou-lhe para uma caserna no extremo do quartel. Uma caserna com guardas (soldados) à porta, o que estranhei. Depois e para minha surpresa, entendi tudo, o secretismo da viagem, o horário, a guarda da caserna. Só ficou por perceber e o Carlos nunca me deu essa informação, o motivo de não levarmos armas.
Entrámos na caserna e...fiquei a saber que era ali que estavam os elementos da ex-PIDE/DGS. O Carlos perguntou por um nome, apareceu um homem ainda novo, fitou o Carlos e vi naquele olhar tanta coisa: surpresa, gratidão, afecto, amizade.
O Carlos não esquecera o seu conterrâneo e fizera 50 quilómetros para lhe dar uma palavra de conforto, de ânimo, de esperança. É fácil escrever isto, 40 anos depois. Mas não era qualquer pessoa, num contexto de revolução, agitação social e política, e, sobretudo de vingança, que tomaria uma atitude como esta.
O Carlos, entre todas as considerações, valorizou o aspecto humano, de fraternidade e companheirismo e foi abraçar o seu conterrâneo.
Cumprimentei o senhor, não me lembro do nome, o Carlos disse-lhe que era de Nisa e ainda brincámos com algumas das “revelações” que fez, a propósito de ter tido uma namorada em Nisa.
Regressámos a Bissau já noite cerrada. Sem armas, como tínhamos ido. Eu, muito mais tranquilo e um pouco mais informado. Os dias que se seguiram, foram de grande agitação. Aproximava-se o fim da comissão de serviço, o “piriquito” já tinha entrado para o clube da velhice e o pensamento estava em Portugal ou na Metrópole, se preferirem. Eram dias febris, havia comissões para tudo e mais alguma coisa e eu vi-me envolvido numa, a nível da unidade. Esqueci o episódio do Cumuré e passado um mês rumava a Lisboa onde no aeroporto de Figo Maduro me deparei com uma manifestação do MRPP que gritavam a plenos pulmões: “Nem mais um soldado para as Colónias!
Passou-se um ano. Nunca mais vi o Carlos, até que um dia, no Verão de 1976, apareceu em minha casa, em Nisa. Eu tinha casado há pouco tempo e recebi-o com grande satisfação.
Reparei que o Carlos não era o mesmo. O sorriso tinha-se-lhe desvanecido. Estava doente, gravemente doente, mas despojado como era das coisas materiais, descuidara-se consigo próprio. Nunca me falou da doença, mas em jeito de despedida, disse-nos: “Tenho esperança em ver nascer o meu filho!
Viu e ainda conviveu com ele durante dois meses. Depois, apagou-se...
Faleceu a 25 de Dezembro de 1976. Há 42 anos...
Era Natal, um dia como tantos, para nascer e morrer. Eu quero fazer renascer, neste texto, a imagem e a memória de um homem bom, de um grande amigo que “partiu tão cedo desta vida descontente”.
Chamava-se Carlos da Cruz Ribeiro e há muito que repousa, em Paz, num lugar etéreo onde subiu pela vontade do Criador.
Mário Mendes