15.12.17

MEMÓRIA: Há 40 anos, outros Natais (1)

Três histórias de guerra em tempo de paz ou vice-versa...
Estamos a poucos dias da celebração da data festiva que é o nascimento de Jesus Cristo. Tempo de reconciliação entre os homens de boa vontade, de paz e de concórdia. Recordo, aqui, nestas três histórias que podiam ser de Natal, de esperança, paz e fraternidade, três episódios da guerra colonial.  
O guerrilheiro intelectual
Estou há pouco mais de um mês na Guiné, destacado para cumprir a comissão de serviço militar e já conheço os horrores da guerra sem ter sido mobilizado para nela participar. Ainda há 15 dias estava em Bissau no quartel de Engenharia e agora, aqui perdido numa aldeia do sul do território. Comecei a ambientar-me ao clima, basta olhar para as minhas pernas e braços, salpicados de empolas pelas mordidelas dos mosquitos. A aldeia tem mulheres novas de seios nus que se riem à minha passagem. Basta olharem para os calções ainda com goma e as pernas esbranquiçadas cheias de mazelas para perceber o alvo das suas risotas. Sou, para elas, um “piriquito” acabado de chegar da Metrópole. A tabanca tem pouco para descrever e o aquartelamento são duas ou três casas de alvenaria e outras de madeira, improvisadas, para além dos abrigos que servem de caserna à guarnição portuguesa. À volta, o arame farpado, por vezes reforçado, e os obuses, estrategicamente colocados para a defesa ou para ripostar ao fogo inimigo (bater a zona). Estou ali com outro companheiro da Engenharia, civil e guineense, para executarmos alguns trabalhos de electrificação e em certo dia o comandante, um alferes-miliciano, pede-me para “ir guardar os presos” pois iam fazer uma operação nocturna. Era apenas um preso e especial. Que nem precisaria de guarda pois se quisesse fugir fazia-o facilmente. O problema era saber para onde. A Guiné, principalmente, aquela zona do território, não tinha estradas. Só rios e bolanhas e trilhos armadilhados e à noite, como diz o povo “todos os gatos são pardos”.
O preso, guerrilheiro do PAIGC era de origem cabo-verdiana. Não era um preso qualquer, filho do administrador de Bafatá, a segunda cidade mais importante da Guiné, 7º ano dos liceus feito em Portugal, uma cultura política de nível superior. Baralhou-me a cabeça. Falou-me da guerra e da ditadura que vigorava em Portugal. Disse-me, vezes sem fim, que a luta não era contra nós (os militares) mas sim contra o poder colonialista de Lisboa. Ouvi-o quase sem lhe responder. Mesmo que quisesse não sabia. Não tinha palavras para ele e, no fundo, admitia que a sua argumentação tinha alguma lógica. Éramos preparados, física e militarmente, para ir “combater os turras”, mas não havia qualquer preparação de carácter político e social. Recebi, ali, a primeira grande lição sobre política anti-colonial e para meu espanto, ofereceu-me, depois um livrinho que me deixou ainda mais surpreso e desorientado. Era o livro da 1ª classe das escolas rurais do PAIGC utilizado nas chamadas “zonas libertadas” e escrito, imaginem, em português e algumas frases do crioulo guineense.
Guardei e escondi o livro o melhor que pude. Ali não haveria qualquer perigo, mas regressado a Bissau e à Engenharia, o livrinho passou a ser uma preocupação e factor de risco. Logo que tive ocasião desfiz-me dele, antes que, por descuido, tivesse algum problema disciplinar.
O 25 de Abril e a liberdade ainda estavam longe, mas não mais esqueci esta lição de política de um “turra”, preso e intelectual guineense.
Mário Mendes in "Alto Alentejo" - 13/12/2017