18.3.16

MEMÓRIAS DE NISA: As feiras de um Avô

As feiras, seja qual for a localidade em que se realizem, têm sempre para os respectivos habitantes um atractivo especial.
É sempre um dia diferente, por tradição, “um dia de feira”, embora as feiras tenham sido bastante alteradas nos últimos anos.
Actualmente, efectuam-se em tão curtos espaços de tempo que lhes poderemos chamar ultra-rápidas, pois que não vão além de quatro a cinco horas na duração. Os vários meios de transporte e outros cómodos criaram esta modalidade.
Ainda não há muitos anos, a maioria dos feirantes transportava-se em carroças e animais de selas, com os seus productos destinados a venda. Os de mais longe chegavam na véspera à tarde, acomodavam os animais e as mercadorias, para terem a noite livre, o que fazia parte integrante da feira.
Nessa noite, a música tocava no coreto e, à sua volta, a mocidade dançava. Os carroceis com iluminação a cores eram mais um atractivo para as crianças e adultos que estacionavam em redor desse espectáculo movimentado e alegre.
As casas de comidas e bebidas, nesse tempo permaneciam abertas toda a noite, assim como as barracas-botequins, em que era servido o prato tradicional: o carneiro guisado; e apesar das regras de higiene serem postas de parte, era sempre um manjar apetitoso. Lá, nessas toscas barracas, encontravam-se velhos amigos que iam molhando a palavra, durante as suas intermináveis conversas. Por vezes surgia um tocador de harmónio, como que a desafiar uma voz que logo surgisse e se fizesse ouvir. Cantava-se o fado e dançava-se o fandango; e a barraca não comportava os assistentes e bailadores.
Rompia o dia. Os quinquilheiros davam as últimas marteladas, ajustando as tendas; e por toda a parte se expunham productos diversos.
O sol vai alto. Já se faziam transacções. A feira tinha começado. Há quem venha apenas para ver o espectáculo de luz e cor. É sem dúvida um quadro de constantes variedades; e a multidão movimenta-se em ritmo acelerado.
A feira está no auge. O ar que respiramos cheira a cozinhados e fritos de barraca. Aqui chora uma criança que recusa a objectiva dum fotógrafo “a la minuta”; ali, uma senhora idosa comprar o quadro da Ceia de Cristo, em relevo metálico.
Passam moças sorridentes, felizes, ajoujadas com utensílios diversos, que em breve irão compor os seus lares. No ar, baralham-se sons de altifalantes, anunciando “o melhor producto, ao melhor preço”.
Avanço pela feira e encontro-me na frente de charlatão que vende remédios milagrosos. Convence. Compram-lhe caixinhas de pomada para os calos. Por entre a multidão, passam animais de várias raças, conduzidos, orgulhosamente, pelos donos recentes. Mais além, homens ajoelhados que escutam o som dos chocalhos. São pastores que os vão comparar para os seus rebanhos.
São horas de enfeirar. Na secção de calçado, aparecem agora muitos ciganos que vendem estes artefactos, de todos os modelos, até dos que já passaram de moda, que entregam por todo o preço. Compro sapatinhos para os netos, uns óculos e uma bengala.
Chegado a casa, as crianças, ingénuas e curiosas, como todas, ao verem os sapatos pulam de alegria. Em seguida, mostro-lhes os óculos e a bengala. Não lhes despertam interesse algum. Mas o mais velho, reflectindo e compreendendo a significação dos objectos que a mim próprio destinei, exclama: - Já estás muito velhinho, avô!
E um riso amarelo se me frizou nas faces, a confirmar uma verdade que tantas vezes nos custa a acreditar, mas que os anos, cruelmente, nos forçam a reconhecer.
E, enquanto lá fora o trânsito aumentava, no transporte de gentes e coisa aos seus destinos, e a feira prestes a terminar soltava os últimos ecos dum bulício ensurdecedor, símbolo de mocidade e vida, eu meditava na verdade do inocente: “Já estás muito velhinho, avô”!...
Aníbal Goulão - “Correio de Nisa” 24/12/1965