23.11.11

ESCRITORES DO CONCELHO (1)

MAFRA – 61
Março fora um mês enorme para muitos, acordara sobressaltado o país com o “Angola é nossa!”, o estremeção da catanada era o começo do cansaço febril das noites frias de Assafora, talhava-se enfim, na forja dos quartéis, a carne que iria apodrecer no ventre mártir do sertão longínquo.
Os homens olhavam-se com o mal disfarçado desespero de quem, por mais que queira, não consegue acordar do acorrentamento imposto por uma realidade viva e ao mesmo tempo morta, que domina sem empolgar, que escraviza sem persuadir, que resigna sem convencer.
“Lá vamos que o sonho é lindo, torres e torres erguendo, rasgões, clareiras abrindo...”
A Juventude estava ali, emparedada, naquele monstro de alvenel batido pela canícula de Julho – Mafra!
A banda formava, na manhã fresca, ao render da parada. E tocava-nos em ondas marciais, retumbantes, os belos hinos que elevaram Patton aos páramos da gesta que rasgara as entranhas da Tunísia e o fizera parar só em Berlim.
Porém, os homens que ali estavam, metidos entre muros que queimavam no sol da tarde, não eram já os mesmos que acompanharam Patton nessa hora grandiosa de libertação de uma boa parte da humanidade, embora fossem feitos da mesma massa.
Eram seres acorrentados que discutiam coisas estéreis sem falar uns com os outros, sem tempo sequer para mijar, correndo às formaturas, areando fivelas, limpando armas, fazendo camas, comendo grão com massa e argamassa de feijão entremeado de serapilheira; correndo sempre, subindo e descendo escadarias longas, percorrendo os largos e profundos corredores, na mira de ganhar, à tardinha, uma breve dispensa de recolher... para sublimar um naco de tranquilidade e poder respirar um pouco.
À noite, a 4ª Companhia de Atiradores formava no corredor “Marracuene”. E, passada meia hora, após o toque de silêncio, uma quietude inquietante pairava no ar pesado das abóbadas, estremecia e rasgava-se nos espaçados brados de alerta, as tímidas lâmpadas pendentes dos ângulos dos tectos faziam rebrilhar baionetas, enquanto, enfarpelados nos capotes, na madrugada húmida, transiam de frio os corpos extenuados das mórbidas sentinelas.
O Monstro avançava, cada vez mais perto. Ouviam-se já, ao longe, os primeiros roncos de “vitória” – Pedra Verde!, Nambuangongo!, Maçanita e Spínola!...
Era a hora. Mas o momento de avançar, para nós, ainda não chegara. O sol e o frio de Assafora moldavam-nos os ossos e os músculos. E a impaciência daqueles homens, feita agressividade inconsciente, contrastava com a soturna passividade sólida daqueles muros que não davam qualquer sinal de vida, ou liberdade.
Luanda, Fevereiro de 1965
Carlos Franco Figueiredo