21.1.14

CRÓNICAS DO REGABOFE (18): Das touradas – contradizendo os seus defensores

Argumento 1 – da tourada como tradição:
O argumento em defesa das touradas porque são uma tradição enraizada no povo, não é um argumento válido nem aceitável. Para isso teríamos que aceitar como boas todas as atividades que por terem sido exercidas ao longo de um período de tempo entraram na tradição dos povos em geral ou de um povo em particular.
Depois, teríamos que negar a mudança como fator inerente à condição humana, ou seja, teríamos que aceitar como verdade que uma determinada coisa depois de ser feita de certa maneira, será sempre executada ad eternum dessa maneira. como se vê esta asserção é falsa, se o homem não fosse por excelência um ser dado à mudança, hoje ainda vivíamos em cavernas e andaríamos nus ou quanto muito, usando umas decrépitas peles de animais cobrindo-nos o corpo e suas vergonhas.
E porque não encaixa a tradição como argumento de defesa das touradas? Porque nem todas as tradições são boas!
No mundo clássico, Grécia e Roma, e mesmo no Renascimento, era comum, aceite e tradicional a prática da pedofilia, vamos aos compêndios de história e não raro encontramos descrições pormenorizadas de como os filósofos gregos, aqueles que sustentam todo o nosso pensamento, os senhores romanos, ou os bispos da igreja e os grandes escultores e pintores renascentistas, se entregavam alegremente a práticas sexuais com os seus discípulos de mais tenra idade. Essas práticas são hoje aceites como naturais e normais? Não. Pelo contrário, um adulto que tenha práticas sexuais com menores, não só é condenado a pesadas penas pelos tribunais como ainda terá que enfrentar a indiferença e o olvido por parte dos seus semelhantes.
Outro exemplo, ainda hoje, nalguns países, ou tribos, africanos é prática corrente, exatamente por ser tradicional, a excisão do clítoris quando as jovens mulheres atingem a idade fértil, prática que quando não causa a morte da mulher logo ali, durante o ato, lhe vai proporcionar uma vida inteira de dor e privada de sentir prazer sexual. Devemos acatar esta prática e condenar milhares de mulheres ao sofrimento? É claro que não!
Mas se uma atividade não deverá ser continuada pelo facto de ser tradicional, como fazer se também é ponto consensual que há tradições boas e que nos movem no dispêndio de todo e qualquer esforço para não as deixar fenecer?
É uma questão de bom senso, de gosto, de juízos de valor, de moral, de ética...
Como todos estes valores atrás enunciados contém uma grande dose de subjetividade, o que é bom para mim pode não ser para ti, teremos inevitavelmente que ter em conta o impacto que determinada prática tem na opinião pública.
Pelo que só poderão ser aceites como boas práticas tradicionais aquelas que não levantem contestação da parte de um grupo significativo de cidadãos, o que não é claramente o caso das touradas, hoje em dia já não se trata de uma ou duas dúzias de maluquinhos que são contra, atualmente a contestação a esta prática abrange milhares de cidadãos, independentemente das suas convicções políticas religiosas, culturais, etc.
Querem exemplos de práticas tradicionais boas e as quais urge dar continuidade e manter?Os bordados, a cerâmica, os enchidos e o queijo de Nisa.
Os dois primeiros, tendem a desaparecer, os dois últimos demonstram vitalidade mas produzidos de modo industrial originando produtos que de tradicional tem apenas o nome.
Poderão aqui os defensores das touradas alegar, mas porque é que os bordados são defensáveis e as touradas não? Como você gosta de bordados, eu gosto de touradas.
Reparem que não é bem a mesma coisa, enquanto contra os bordados apenas conseguirá argumentar com o gosto, as touradas ferem sentimentos, torturam animais, ofendem outras culturas, religiões, sentimentos morais ou éticos de terceiros.
Caso me não tenha feito entender, agradeço o contraditório, acredito que é da discussão que pode nascer a luz.
Argumento 2 – da tourada como economia mola de desenvolvimento do interior
Este é de todos o argumento mais badalado pelos defensores das touradas mas é também o mais perigoso. Perigoso porque pode e leva os mais incautos ao engano e a arrostarem com dívidas, por vezes elevadas. Por uma razão muito simples, o espetáculo tauromáquico, por si mesmo, não dá lucro, salvo raras exceções dá elevados prejuízos.
A não ser assim, como se explica que praticamente todas as praças de touros do país sejam equipamentos públicos?
Exatamente porque a sua construção manutenção e exploração dão prejuízo, caso dessem lucro estariam nas mãos de investidores privados. Investidores que cavalgando a galope o seu empreendedorismo não deixariam escapar para o setor público os ganhos que poderiam ser apenas deles.
Não conheço a situação da praça de touros de Vila Franca de Xira nem da Moita, mas tirando o Campo Pequeno, não conheço mais nenhuma praça que seja posse de privados e mesmo o Campo Pequeno sobrevive graças ao centro comercial construído nas suas galerias e vê acontecerem lá mais espetáculos musicais que corridas de touros.
Ou seja, as touradas só são lucrativas quando acompanhadas por outras atividades paralelas, no interior costumam ser os comes e bebes a cobrirem o saldo negativo da bilheteira da tourada. ainda assim, na minha terra natal, organizaram há bem pouco tempo uma tourada na qual apenas os cavaleiros e salvo erro o ganadeiro cobraram caché e nem com o dinheiro do bufete se safaram. tiveram forte prejuízo.
Mesmo verificando-se prejuízo financeiro da tourada, ainda se pode clamar no desenvolvimento do moribundo comércio local pela grande afluência de forasteiros no dia da corrida. Também não me parece que seja chão digno de ser trilhado, não vão ser duas dúzias de enchidos e queijos, meia dúzia de peças de olaria e duas ou três de bordados que virá revitalizar o comércio local. Arranjem, se fazem favor outras e novas ideias.
Concluindo: a tourada é desde sempre uma atividade subsidiária do Estado, da Monarquia primeiro, é aliás a principal demonstração do marialvismo da fidalguia, quase desaparece na 1ª República e ressurge como esteio do estado-novo salazarista, sempre com o Estado como patrono e mecenas, agora não será diferente.
Em termos económicos teremos pois na tourada um espetáculo que findo o último passodoble entoado pela banda musical, terminadas as cortesias e as lides, ao deixar de se ouvir o último estralejar do foguete largado pelo João Adriano, acaba a festança, ficam as contas por acertar e essas já sabemos quem é sempre o pagador, nem mais nem menos que o zé povinho, ou seja, todos nós.
Argumento 3 – dos touros de lide como meio de preservar de forma sustentada e ecológica o meio ambiente:
E eis-nos chegados ao argumento que parece decisivo em favor das touradas e até dá para os seus mais acérrimos defensores fazerem figura de bons rapazes, que o são certamente, dizem eles: “o touro bravo só subsiste porque há touradas, assim, as touradas permitem a preservação de mais uma espécie e como o touro bravo exige um determinado meio ambiente para sobreviver, ao mantê-lo, estamos também a contribuir um planeta mais ecológico”.
Falso!
O touro bravo existe muito antes de existirem touradas e espero, continuará para muito depois delas. O touro bravo não existe em função da lide, esta sim existe em função do touro bravo.
Esta espécie é facilmente convertível à alimentação humana como demonstra anualmente a feira gastronómica promovida pelo município de Mora, o touro bravo pode entrar na ementa humana; se passar por uma praça e for lidado, com os produtos químicos que lhes enfiam no bestunto e com as infeções ganhas na corrida é que só serve para o crematório.
A criação do touro bravo, por si só, não é rentável, por isso os ganadeiros não se dedicam apenas a esse tipo de criação, os que são aficionados criam-nos para a lide mas como complemento de uma outra atividade, agrícola ou empresarial.
Numa exploração agrícola, respeitadora do meio ambiente, diversificada e ecologicamente sustentável, cabe perfeitamente a criação do touro bravo como interveniente da cadeia alimentar humana.
Ainda há dias vi na televisão uma herdade, salvo erro da família Brito Pais, algures entre Évora e Beja, as minhas desculpas mas a memória já não é a dos tempos de juventude, na qual coexistiam culturas de regadio, culturas de sequeiro, vinha, criação de touros bravos e de porco preto alentejano, tudo cultivado e criado segundo modelos da agricultura biológica. Esta herdade não existe assim desde sempre, foi a iniciativa, no caso empresarial privada que a reconverteu numa herdade moderna e ecologicamente sustentada. Poderão dizer-me, está bem mas a família Brito Pais (desculpem-me se não for pois não me recordo, mas o nome é meramente ilustrativo) cria os touros porque estes vão ser lidados nas corridas de touros. Sim, fazem isso se não tiverem outra alternativa para colocar no mercado a carne dos animais, pois se a tiverem eles deixarão de se preocupar com as touradas.
Quanto ao meio ambiente do touro bravo, no caso, constituído por sobreiro e pequenos arbustos é exatamente o mesmo do porco preto pelo que não corre perigo. Pelo menos enquanto não se considerar que o eucalipto tem as mesmas condições para ser cultivado que as árvores autótones.
Essa dos eucaliptos é que foi um par de bandarilhas mal colocado.
Concluindo: não sendo a tourada uma tradição arreigada ao povo português, antes uma barbaridade rejeitada por muitos; não sendo as touradas uma atividade economicamente viável, sem apoios de dinheiros públicos; sendo possível manter o ambiente natural e o touro bravo sem a existência de touradas; não há motivos para que as mesmas se continuem a realizar, para lá é claro, do prazer pessoal que alguns retiram daquele “espetáculo” triste.
Nota: Este texto foi enviado pelo autor ao “Jornal “da câmara” de Nisa” como resposta a um texto de Marco Oliveira aí publicado e em sequência à apresentação e aprovação pelos deputados municipais do P.S. da proposta de considerar as touradas “património cultural imorredoiro”, neste concelho. O jornal não publicou o texto e ao autor, disse nada.  
Jaime Crespo