3.12.13

OS CASAMENTOS EM NISA (1) : O Quintal da Festa

A propósito da exposição "Objectos utilizados no quintal da festa",que durante o mês de Novembro foi mostrada ao público na Biblioteca Municipal de Nisa, organizada pela Associação Nisa Viva, julgo oportuno transcrever (e recordar) a mais antiga descrição que se conhece sobre este tradicional costume tipicamente nisorro e que foi mantido ao longo de várias gerações, constituindo um modo verdadeiramente sui generis de celebrar o casamento, em terras alentejanas.
José Diniz da Graça Motta e Moura na sua "Memória Histórica da Notável Vila de Niza" faz uma abundante e pormenorizada descrição dos casamentos em Nisa, abordagem que faremos noutros artigos, interessando por ora, a parte respeitante ao quintal da festa.
Como curiosidade e atestando a genuinidade e tradição desta iguaria gastronómica nisense, encontramos na descrição (o livro é de meados do séc. XIX) referência aos Maranhos... 
Avancemos com a Descripção das bôdas e casamentos das classes inferiores d´esta villa, que apresentam certas originalidades dignas de se memorarem por sua singularidade e velhice.
(...) "Na véspera do noivado pela tarde vão-se juntando no quintal da festa as donzellas convidadas para escolherem a carne, onde estão os rapazes matando e esfolando as badanas e cabras, que os pastores deram para se immolarem e comerem na festa; concluída a operação, e mettidas as postas em grandes cassarollas, que se arrimam symetricamente em roda das paredes, e entregues aos cuidados e perícia de cinco ou seis cosinheiros, volta o alegre rancho para a casa da festa, onde a alegria e a satisfação os esperam, porque, assim que elle chega, tocam as violas, e começam os bailes, as rodinhas, os cantares e os folguedos de uma mocidade ébria de prazer e de goso: no fim da tarde e principio da noite chegam os noivos e tomam parte no divertimento rindo e brincando também, e ali se conservam até à meia-noite separando-se para se prepararem para o augusto sacramento, que hão de celebrar no dia seguinte.
Com a entrada dos noivos começam a entrar também os serviços, que cada um dos convidados leva ou manda, e que á proporção, que se recebem, se relacionam em um caderno, que um escrevente improvisado tem sobre uma mesa collocada á porta da casa, onde se recolhem: providencia muito salutar, que os livra de muitos apuros e logros!
Consistem os serviços em pão cosido ou em grão; os da primeira espécie constam de doze pães de trigo levados em um taboleiro com sua toalha de folhos de renda; os da segunda em um alqueire de trigo ou centeio; e os dos padrinhos e madrinhas no dobro d´estas quantidades, e alguns mais generosos e abastados mandam o quadruplo; os que dão este serviço ficam com o direito incontestável de serem admittidos ao almoço e jantar da festa, levando consigo a sua família e domésticos; e não indo, a esperarem em casa por um grande prato de carne refogada com azeite, salsa, cebola e pimenta, e outro mais pequeno de arroz amarello com tanta pimenta, que mal pode ás vezes mastigar-se, e engulir-se.
Os padrinhos além d´esta substancial refeição, são ainda agraciados com um prato de sangue e fígado para o almoço, tão apimentado como o refogado e arroz, que também lhes mandam para jantarem; e isto ainda que elles sejam os mais opulentos e nobres da villa.
O dia das bodas é de regosijo e divertimento, e ao mesmo tempo de abundância e regalo para todos os que tomam parte n´ellas: logo ao despontar da aurora velhos e moços, empregados nas ocharias, e repartição gastronómica, tratam de preparar o almoço, que constam do sangue e intestinos das victimas caprinas e bodinas, recheados com cebola, salsa e o indispensável pimentão, e das tripas, de que fazem um pequeno novelo, que denominam maranhos, cozidos com arroz, e que constitue um manjar delicioso para aquelles exigentes e robustos estômagos.. Pelas oito horas da manhã começam a collocar-se as mesas, que são grandes escadas de mão, postas horisontalmente sobre duas tripeças ou bancos, e cobertas de toalhas de uma alvura admirável, em cima das quaes se põe sem ordem o pão, e o vinho em palanganas de louça branca, e junto d´ellas pequeninas tijelas, por onde se bebe.
Depois de tudo assim disposto e ordenado, começam a entrar os convidados, que, à proporção que chegam, vão tomando logar sem distincção de sexo, idade, ou condição; e depois de todos cheios, e sentados os convivas, chaga o apontador dos serviços, orgulhoso com a importância momentânea da necessidade, e por uma rigorosa chamada para verificar, como os Efforos de Lacedemonia nas mesas comuns, que Licurgo instituiu, os que faltam e têem de ser indemnisados d´esta perda; ou para expulsar aquelles que intempestivamente ali se collocarem; porque desgraçado d´aquelle que sem ter concorrido com serviço e sem que o seu nome fosse inscripto no registo fatal, ali se assentasse; seria expulso no meio dos apupos e surriada da assembléa inteira. (...)
Verificados os poderes, começa então a comida, e cada um dos circunstantes, servindo-se dos garfos, colheres e facas, que trouxeram, mostra a sua habilidade e desembaraço gastronómico; e as fumegantes iguarias vão pouco e pouco desapparecendo dos grandes pratos, em que as pozeram e onde logo são substituídas por outras igualmente apetitosas e substanciaes; mana o vinho das amphoras, e dos odres para as palanganas, todos e todas bebem e se alegram por tal forma, que as bodas de Camacho, onde o pobre Sancho se regalou, não foram mais abundantes nem mais alegres.(...)
Motta e Moura - Memória Histórica da Notável Vila de Nisa - Págs 144 a 152